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Vida Simples, 1/09/2004

Golpe de mestre

LIANE ALVES

Nascidas há milênios em mosteiros no Oriente, as artes marciais ensinam a aproveitar os tombos que a vida nos dá

Gustavo Lacerda

Imagine que a vida é uma luta e o mundo dos adultos é um tatame. Ou um ringue, uma arena ou mesmo um campo de batalha. Os árabes chamavam esse espaço sagrado onde aconteciam lutas de al maida, o tablado. Os japoneses, de dojô, o lugar da iluminação. Por aí se percebe que essa história de enfrentar o outro e, portanto, a si mesmo é coisa séria e que está muito além do ganhar e do perder imediatos. Mas continuemos com a nossa comparação.

Vamos supor agora que você seja um lutador, um guerreirão daqueles, alguém que nasceu com o espírito de um bravo nas veias. E que você está pisando no ringue dos adultos pela primeira vez.

Antes de chegar ao tatame, você estudou bastante. No colégio e na faculdade, aprendeu um monte de boas informações – os nomes de todos os grandes campeões, a descrição de suas melhores lutas e como se chamam os golpes. Teve até chance de praticar um pouco com lutadores bem camaradas. Mas agora não é mais treino. Você está no ringue. Você estuda seu adversário com cuidado e de repente plaft!, você recebe o primeiro golpe e cai estatelado. Vem o segundo e você quebra um dente, o terceiro acerta direto no fígado, o quarto você já nem sabe onde doeu – e em seguida você está no chão. Você levanta, se lembra de um golpe ensinado na escola e consegue fazê-lo direitinho. Mas em troca leva mais três ou quatro bordoadas. E assim segue a luta, durante anos, nessa proporção inglória em que você dá uma e leva várias, até equilibrar o que você aprendeu na escola com sua experiência concreta no tatame da vida.

Pois é. A vida é assim: a gente só aprende apanhando. Mas dá para reduzir a surra, e é isso que as artes marciais podem fazer por você: elas ajudam a diminuir o número de pancadas necessárias para você aprender a viver.

“Esquecemos de como se luta”, diz a psicóloga paulista Vera Lúcia Sugai, uma lutadora de respeito, faixa marrom de judô e autora de livros sobre artes marciais. Mas como assim, Vera? E a batalha diária contra o relógio, a guerra no trânsito, as quedas de braço com o chefe? Isso não é saber lutar? Segundo ela, não. Isso é ter espírito de luta, aquilo que anima um guerreiro por dentro. Essa gana a gente tem de sobra, diz Vera Lúcia. Ainda mais no Brasil, onde não se consegue nada sem suar muito. “O Brasil não é país para amador”, dizia Tom Jobim, o maestro filósofo. Andamos no fio da navalha – bobeou, dançou. Por isso somos tão espertinhos, tão vivos. É necessidade, mesmo.

E, se a vida é uma luta, no tatame brasileiro todo dia é dia de treino. Na China, os lutadores de kung fu do célebre mosteiro de Shao Lin se exercitavam em cima de altos postes onde mal cabia o pé. E ficavam andando de lá pra cá sobre as estacas, sem olhar para baixo, para treinar os passos corretos dos golpes. Se caía, morria. Juntava os caquinhos, encarnava na próxima vida, paciência. Por aqui, para dançar miudinho a gente não precisa nem de poste.

O que a baiana não tem?

Tudo bem, não há vida sem sofrimento, já diziam Buda e mais uma porção de filósofos pé no chão. O detalhe, diz Vera Lúcia, é que andamos apanhando além do que é preciso, porque nosso desempenho no tatame está mais para Didi Mocó que para Bruce Lee. Nosso método, diz ela, ainda é o da tentativa e erro. E a desvantagem dele é que demora muito tempo até ser aprendido. É por isso que artes marciais podem nos ajudar: elas ensinam técnicas e estratégias de como reagir mais velozmente e com mais sabedoria nessa luta. E apanhando menos.

Aí é que entram as lições simples mas vitais dessas práticas, que a gente pode incorporar na vida: saber como cair sem se machucar, a se levantar rapidamente depois de um golpe, a desarmar uma agressão com facilidade, a enfrentar um oponente mais forte ou direcionar o ataque contra o próprio agressor. E, convenhamos, ninguém nos ensina isso na sala de aula. “O que acontece no tatame acontece na vida. Se a gente aprende a cair rolando e a se levantar rapidinho, também incorpora esse aprendizado internamente, na psique. Fica mais fácil se recompor diante dos baques psicológicos”, afirma Vera Lúcia, que não bate sozinha nesse ponto: são várias as correntes da psicologia que enxergam estreita relação entre corpo e mente (ou corpomente, como dizem). Ou seja, essas práticas podem transformar o espírito.

Vida ou morte

As artes marciais nasceram como um treino concreto para ataque e defesa durante combates – a palavra marcial vem de Marte, o deus da guerra. Era questão de sobrevivência. Hoje virou arte porque a vantagem de aprender a lutar judô ou karatê independe de haver um ataque real. Mas elas continuam sendo uma luta – só que em forma de auto-aprimoramento, como uma luta contra si mesmo. “A função dessa arte é se conhecer – tanto os limites, dificuldades e erros quanto as qualidades e acertos”, diz Vera Lúcia.

Não só. Aprende-se também sobre como lidar com o outro, o oponente. Ali, no tatame, não dá para seduzir, nem tentar enrolar. Não tem nhenhenhém. É impossível fugir do confronto, contorná-lo. “Aprendemos a ser objetivos”, diz Vera.

Maria Luiza Serzedello, a Lila Sensei, hoje quarto dan (grau) e mestre de aikidô, aprendeu isso na raça. Ao ser reprovada no exame de obtenção da faixa preta, um dos colegas de academia, coreano, comentou: “No meu país, você apanharia na cara por ter envergonhado seu mestre”. Minutos depois, ela enfrentaria o sujeito no tatame. “Vi a raiva fervendo dentro de mim.” Mas a essência do aikidô é não responder a uma agressão recebida e desarmar o golpe. Foi preciso dominar a raiva. Sua postura impressionou o adversário e os dois acabaram amigos. E hoje ela é capaz de reconhecer: “Ele me ensinou demais”. Convenhamos, o que mais podemos querer de um adversário?

Eu comigo

Cada luta tem sua maneira de ensinar. Nas refinadas artes marciais internas, por exemplo, como o tai chi chuan, o qi gong (pronuncia-se chi kun), o baguá zhang e o xin yi kuan, uma espécie de yoga chinesa em movimento, o grande objetivo é desbloquear a energia qi (ou chi), aquela força vital que passa pelos meridianos do corpo e que a ciência não consegue detectar. Elas são mais introspectivas, na maior parte do tempo não é necessária a presença de um oponente externo, é mais você aprendendo sobre si. Enfim, elas ensinam a transformar a própria qualidade da nossa energia interna – para que a gente possa agir com mais equilíbrio e sabedoria no mundo.

As artes marciais externas, que envolvem golpes contra um adversário, dividem-se entre as competitivas (algumas delas viraram esporte, como o judô) e as não competitivas. E aí o bicho pega. Muitos mestres e praticantes acham que não deveria haver competição, faixas, prêmios e campeões. A competitividade, dizem, depõe contra o verdadeiro espírito das artes marciais, que é o autoconhecimento. O aikidô, por exemplo, uma arte marcial não competitiva criada no Japão como um brado pacifista em plena Segunda Guerra Mundial, é considerado o caminho da harmonia. “Ele ensina exatamente a não lutar, a desarmar golpes, a se desviar da agressão do adversário e a deixar ele se derrotar sozinho”, diz Lila Sensei.

Já os que defendem as lutas acham que não há desenvolvimento interno sem competição e que o embate reflete o próprio jogo da vida. “Mesmo que haja um oponente, no final das contas o lutador sempre perde para seus próprios limites, não para o outro”, diz Vera Lúcia, que treina equipes de judô.

Quer praticar?

Na hora de escolher uma arte marcial, alguns cuidados ajudam a saber o que se vai encontrar pela frente. Comece prestando atenção se o nome da luta acaba em “dô”, como judô, karatê-dô, hapkidô, taekwondô. Em japonês, dô quer dizer “caminho espiritual” e é sinal de que o método valoriza o auto-aprimoramento. Claro, a ênfase depende muito do peso que o mestre, ou a academia, dá a isso. O kung fu, que não acaba em dô, também pode revelar um profundo caminho espiritual. Depende do mestre. Saiba que muitos dos estilos dessa luta (louva-deus, garra de tigre, garra de águia, garça) nasceram em mosteiros na China. O problema é que, se o kung fu influenciou o cinema, o cinema também influenciou o kung fu – para pior. E algumas escolas hoje se limitam a ensinar como golpear com violência.

Portanto, antes de sair correndo para se matricular na academia mais próxima, é bom se informar bastante a respeito dos mestres, dos mestres desses mestres e dos mestres deles. Eles fazem a diferença entre uma sessão de pancada e uma aula de sabedoria.

A luta é livre

• Qi gong
Desenvolve a força interna ao máximo. Desbloqueia a energia vital.

•Tai chi chuan, baguá zhang e xin yi-chuan
Usam a força do adversário contra ele mesmo. Os golpes parecem uma dança.

• Aikidô
Demonstra que a melhor saída é não lutar. Treina a arte de cair e a de levantar-se rapidamente. Desarma os golpes.

•Judô
Incentiva a luta como forma de autoconhecimento. Procura imobilizar o adversário.

•Karatê-dô
Centra na precisão e na força de cada golpe. Também inclui o auto-aprimoramento.

• Taekwondô
Usa as pernas e se vale do elemento surpresa. Dependendo do mestre, estimula o autoconhecimento.

•Kung fu
Golpes fortes e precisos. Aumenta a velocidade de reação, que passa a ser quase instantânea.

•Jiu-jítsu
Utiliza força e agilidade. Procura jogar o adversário no chão, campo onde o lutador é invencível.

Para saber mais
O Caminho do Guerreiro, Vera Lúcia Sugai, Editora Gente
A Arte da Estratégia, Vera Lúcia Sugai, Editora Sapienza

 
 

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