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Exame, 9/03/1988
A Saga do trabalho (continuação)
Indústrias
O ritmo japonês das fábricas dos imigrantes
Raul Junior
O velho Nishimura no pátio de estoques do Jacto, em Pompéia: uma escola agrícola para dirigir e uma empresa para cada filho ter a oportunidade de experimentar, na prática, como é mais fácil tocar um negócio.
O destino agrícola da maioria dos imigrantes japoneses fez com que a eventual vocação industrial de alguns só despertasse durante a II Guerra Mundial, período em que nasceram diversas fábricas montadas por brasileiros de todas as origens. Talvez a mais nítida vocação industrial entre os imigrantes japoneses, Hiroshi Urushima, 63 anos, chegou ao Brasil em 1936 com os pais e sete irmãos. "Meu pai era comerciante e não agüentou o trabalho na enxada, morreu logo no início", recorda Urushima. "Eu e meus irmãos também não gostávamos de lavoura e fomos arranjando empregos na cidade. Com 14 anos, em 1938, eu comecei a trabalhar como auxiliar de um alemão que consertava rádios no bairro de Pinheiros, em São Paulo", resume o fundador e presidente da Motorádio, empresa de 2 500 empregados, com três fábricas no Brasil.
Coroada no ano passado com a Ordem do Mérito do Trabalho ("Sempre fui operário, nunca tirei férias", diz ele com orgulho), a carreira industrial de Urushima no setor eletroeletrônico foi construída a partir de seu próprio empenho em aprender. "Eu aprendi muita coisa nos cinco anos em que trabalhei na oficina do alemão Willy", lembra ele. "Mas foi lendo livros japoneses sobre eletrônica que dominei o ofício", reconhece Urushima, que guarda como símbolo do duro começo o primeiro rádio de automóvel, pré-histórico equipamento de 5 quilos, que fabricou com peças avulsas em 1940, época em que, segundo ele, "o Brasil exportava um navio de café para importar meia dúzia de automóveis".
Durante a guerra, Urushima ganhou dinheiro fabricando transformadores para empresas e potentes receptores de rádio encomendados por imigrantes que só se preocupavam em ouvir notícias diretas do Japão. Sua obsessão por fabricar auto-rádios, motivo de zombaria na década de 40, permitiu-lhe ser o primeiro fabricante brasileiro desse produto. Antes mesmo da implantação da indústria automobilística no país, por volta de 1954, Urushima começou a fornecer rádios em série para a Mesbla, que os revendia como opcionais dos veículos Chevrolet importados dos Estados Unidos. Mesmo depois da organização da Motorádio, em 1963, Urushima ainda continuou por vários anos funcionando como o cérebro da empresa. Alguns anos mais tarde, quando a concorrência se tornou mais acirrada no mercado, ele transferiu de casa para a fábrica uma estante com 440 livros japoneses - "a fonte do progresso da Motorádio", como faz questão de afirmar - e contratou engenheiros do Japão para "chupar" tecnologia, sem pagar royalties. De 1970 a 1978, com a mesma intenção, Urushima manteve com a poderosa Sony uma associação (Sony-Motorádio), por meio da qual a empresa brasileira fabricava radiogravadores, aparelhos de som e televisores vendidos pela Sony. Para não ser engolido pelo sócio, Urushima desfez a associação ao sentir que já tinha absorvido um grau de conhecimento tecnológico suficiente para andar sozinho.
Nem por isso ele perdeu a amizade e a admiração do fundador e presidente da Sony, Akio Morita. Durante uma visita às instalações da Motorádio em São Paulo, há vários anos, Morita disse a Urushima: "Se você tivesse ficado no Japão, teria construído uma empresa maior do que a minha". Foi um dos maiores elogios já recebidos pelo fundador da Motorádio.
Apesar do pioneirismo e da luta selvagem para não perder o passo na corrida tecnológica, a Motorádio foi amplamente ultrapassada no mercado da linha automotiva pela alemã Bosch e pela norte-americana Philco. Mas o estilo de seu fundador não permitiu que a empresa sucumbisse ante seus poderosos concorrentes multinacionais. Urushima lançou-se de tal forma à verticalização e à diversificação que, embora mantenha o nome, já não são os rádios para carros que respondem pela maior parte do faturamento da Motorádio (1,7 bilhão de cruzados em 1987).
Tendo reduzido seu pessoal de 4 000 para 2 000 entre 1982 e 1985, a empresa fabrica hoje 23 produtos diferentes, fornece 5 milhões de peças mensais para terceiros e até se firmou no setor de móveis, a partir de uma marcenaria implantada para produzir caixas de alto-falantes. Com capital do BNDES e ações nas Bolsas de Valores, a Motorádio se prepara para lançar não só novos rádios mas também fornos de microondas e aparelhos fac-símile. "Eu vou agüentar até o fim com a Motorádio", avisa Urushima, que tem três dos quatro filhos trabalhando na empresa.
O kanban com sotaque brasileiro
O comando familiar, a verticalização da produção e certas manhas nipo-brasileiras na apropriação de tecnologia são características também encontradas em outras indústrias fundadas por imigrantes japoneses, como a Hatsuta, a Nakata e a Jacto. Pioneira na fabricação de pulverizadores para o combate à ferrugem dos cafeeiros no início da década de 70, a Hatsuta Industrial, de Guarulhos (SP), passou por duas concordatas na década de 80 e, atualmente com 400 empregados, tenta reestruturar-se com uma radical mudança administrativa e operacional.
Fundada no início da década de 60 por Shigeyoshi Imai (1902-1984), que ganhou dinheiro distribuindo ferramentas e máquinas agrícolas importadas do Japão - entre elas os pulverizadores da tradicional Hatsuta japonesa -, a Hatsuta brasileira verticalizou sua produção a tal ponto que, na década de 70, candidatou-se à fabricação de motos no Brasil. Duas associações infrutíferas, primeiro com a Honda e depois com a Suzuki, resultaram em prejuízos que abriram o caminho para a crise na empresa, agravada pela incompatibilidade entre os dois herdeiros, Takeshi e Luiz Imai, enfim separados em 1987. "Eu reassumi o comando da empresa no meio de uma greve por atraso de salários", conta Takeshi Imai, engenheiro mecânico de 47 anos, que há cerca de seis meses doou 25% das ações da Hatsuta para a associação dos funcionários da empresa, passando, a partir daí, para uma tentativa de "administração participativa" inspirada em sua experiência na Honda do Japão.
"Aqui na Hatsuta a hipótese do sucesso agora é a de que 400 pessoas pensando alcançam melhor resultado do que meia dúzia de iluminados", explica Takeshi Imai, que está tentando decolar outra vez com a produção de um patinete motorizado - primeiro produto da administração participativa - e com o lançamento de um ultraleve para pulverização agrícola.
Mesmo que a diversificação não dê certo, a Hatsuta deverá transferir sua fábrica para outro local, pois a valorização imobiliária das atuais instalações, a apenas um quilômetro do aeroporto de Cumbica, estimulou Takeshi Imai a projetar ali a construção de um hotel e um shopping center. O maior problema, depois da falta de liquidez e de capital de giro, é a credibilidade abalada pelas concordatas, pelas brigas familiares e pelos antigos desentendimentos com a Honda e a Suzuki. Embora Takeshi Imai seja uma pessoa extremamente afável, depois de tantas experiências amargas, a Hatsuta costuma ser citada por membros da "colônia" como um exemplo pouco feliz da proficiência do imigrante japonês no setor industrial.
De fato, quando se fala de sucesso nesse aspecto, os descendentes de imigrantes preferem citar empresas como a Jacto, de Pompéia (SP), ou a Nakata, de Diadema (SP), que, no começo chegaram a ser concorrentes no ramo de pulverizadores agrícolas, mas ao longo da história acabaram tomando rumos bem diferentes. Na década de 40, trabalhando no oeste paulista, tanto o fundador da Jacto como o pioneiro da Nakata acumularam seus primeiros capitais com serviços avulsos de mecânicos e funileiros. Shunji Nishimura, que chegou ao Brasil em 1932, permaneceu com sua oficina de consertos em Pompéia, uma cidade que hoje depende da Jacto, Fukuichi Nakata (1892-1981), ex-marujo da Marinha Mercante do Japão, que imigrou para o Brasil em 1929, transferiu-se para São Paulo, no final da década de 40.
Viúvo, com quatro filhos, Nakata aplicou suas economias na compra de uma banca de frutas de um conterrâneo no bairro da Aclimação. "Era uma banca condenada. No dia seguinte, ela foi impedida de funcionar pela Prefeitura", lembra o quinto filho de Nakata, Itiro Hirano, que não usa o sobrenome do pai porque desde pequeno foi criado por outra família. Enquanto os filhos foram trabalhar como empregados ou autônomos, o velho Nakata comprou uma bigorna que foi o embrião da atual indústria de 2 500 empregados instalada no ABC paulista. De uma oficina que fazia fôrmas para doces, panelas e pulverizadores agrícolas, a Nakata cresceu lentamente, fabricando peças para máquinas de lavar roupa e veículos. O contrato para fabricar tuchos de válvulas de motores Volkswagen deu-lhe acesso à TLW alemã, da qual absorveu tecnologia para se tornar o maior fabricante brasileiro de barras de direção, com um faturamento anual de 70 milhões de dólares e exportações para 70 países.
Filhotes por todos os lados
Em 1974, a Nakata associou-se à japonesa Tokico para fabricar amortecedores. A sociedade foi desfeita quatro anos depois, sem que a Nakata deixasse de produzir os amortecedores HG (hidrogás), ponto-chave de sua publicidade em competições esportivas. "Como nós dominamos o mercado de barras de direção. investimos no mercado de amortecedores porque é o único segmento em que podemos crescer", explica o superintendente Itiro Hirano, advogado que se integrou à Nakata em 1959, quando a fábrica tinha 25 empregados.
A fábrica da Nakata em Diadema é uma impressionante mescla de coisas brasileiras e japonesas. Na frente há um jardim japonês com um pequeno lago e pinheiros anões. Os pavilhões industriais cresceram cercando um belo campo de futebol que atualmente ocupa o miolo do terreno de 140 mil metros quadrados. No final da tarde, quando termina o expediente, os guardas que permanecem na fábrica abrem o viveiro de passarinhos para o passeio dos pavões pelo espaço ainda disponível no quarteirão irregular comprado aos poucos pela empresa.
“Aqui nós não pagamos bem", admite Hirano, "mas damos segurança aos nossos empregados, tanto que temos gente que está conosco desde o início." Essa espécie de paternalismo bem brasileiro, que contém algo da vitaliciedade empregatícia das grandes empresas japonesas, é um dos orgulhos de Itiro Hirano, que se gaba de nunca ter sofrido uma paralisação por greve. "Uma das nossas idéias é montar uma nova fábrica em que os empregados serão sócios: eles vão participar do lucro, mas também vão correr o risco", diz ele.
A nova fábrica, na realidade, é mais um desmembramento da Nakata, cujo processo de verticalização, combinado com a diversificação, gerou uma série de empresas interdependentes como a Ática (estamparia), Brasitália (forjaria), Susuki (usinagem), Servus (informatização) e Kepstrom (sensores). São os "filhotes" crescidos da Nakata, que também está por criar uma fábrica de plásticos e outra de máquinas operatrizes, ambas resultantes do esforço da empresa-mãe para "fazer em casa" o que poderia ser adquirido de terceiros.
"Na agricultura, não há férias"
Os maiores empreendimentos dos imigrantes (Cz$ milhões de 1986) |
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Nome | Receitas | Setor |
Coopercotia | 10.315 | Alimentos |
Bco. América do Sul | 7.044* | Banco |
Coop. Sul Brasil | 1.180 | Alimentos |
Moeda | 1.100** | Agropecuária |
Matsubara | 1.080** | Agropecuária |
Cotia Créd. Rural | 1.063 | Coop. Crédito |
Takenaka | 859 | Fertilizantes |
Óleos Pacaembu | 852 | Alimentos |
Sansuy | 799 | Plásticos |
Nakata | 703 | Mecânica |
T. Tanaka | 703 | Importação |
Motorádio | 637 | Eletroeletrônica |
N. Sra. da Penha | 512 | Ind. Papel |
Jacto | 481 | Mecânica |
Kitano | 427 | Alimentos |
Gyotoku | 420 | Cerâmica |
Ito Ovos | 406 | Alimentos |
Bratac | 380 | Fiação de seda |
Papelok | 313 | Ind. papel |
Granja Saito | 305 | Alimentos |
* Depósitos ** Estimativa de Exame Fonte – EXAME Seleções Econômicas |
Tal como na Nakata, a atomização empresarial é uma prática deliberada de Shunji Nishimura, que aos 78 anos continua em Pompéia comandando a Jacto e uma penca de cinco empresas-satélites, com um total de 1 500 empregados. Aproveitando a recessão do início dos anos 80, a empresa introduziu em sua linha de montagem o esquema do kanban japonês, pelo qual um operário controla a operação de mais de uma máquina operatriz ou é responsável pela montagem de uma parcela considerável de um produto.
O "enxugamento" da Jacto foi determinado, em grande parte, pela sazonal idade da demanda de seus produtos, todos voltados para o mercado agrícola - pulverizadores e colheitadeiras de café. O efetivo básico de 900 funcionários permite atravessar os altos e baixos da demanda sem inflar ou mutilar violentamente o quadro pessoal. Por trás dessa estratégia não existe apenas a convicção de que a estabilidade funcional concorre para a manutenção de bons índices de produtividade. Por experiência própria e também pela observação da prática japonesa, o velho Shunji Nishimura concluiu que "é muito mais fácil administrar uma empresa pequena".
Como tem seis filhos trabalhando consigo, Nishimura induziu a criação de empresas-satélites que exploram opções mercado lógicas interessantes para uma empresa pequena, mas complicadas para uma empresa grande como a Jacto. Assim, o departamento de fabricação de recipientes plásticos da Jacto virou a Unipac, que atende à Jacto e a terceiros. O setor de pequenos pulverizadores da empresa-mãe transformou-se na Brudden, que começou com 15 pessoas há oito anos e atualmente emprega 150 pessoas, produzindo não só pulverizadores para jardinagem mas também cortadores de grama e, agora, aparelhos de ginástica. Takashi Nishimura, engenheiro mecânico de 48 anos, filho mais velho do fundador da Jacto, não esconde sua satisfação por ter deixado a Jacto para cuidar da Brudden. "Aqui é mais gratificante porque eu consigo acompanhar tudo", afirma Takashi, cuja mulher, Edith, também toca uma microempresa fabricante de bonés, produto muito apreciado por japoneses e descendentes.
"Uma fábrica grande como a Jacto leva a gente à especialização e à perda da visão global", explica o caçula Jorge Nishimura, de 34 anos, também engenheiro mecânico, que comanda a Sanisplay, a empresa mais nova do grupo. "Nessas empresas satélites criadas por diversificação concêntrica", diz Jorge, "cada um de nós está tendo a oportunidade de experimentar o controle completo de uma empresa desde o início, tal como aconteceu com meu pai na Jacto" - hoje dirigida mais diretamente pelo economista Jiro Nishimura, segundo filho do patriarca. Enquanto o administrador de empresas Shikao Nishimura, o terceiro irmão, cuida da Unipac e os outros dois filhos, Lincoln e Shiro, tomam conta das fazendas que somam 50 mil hectares em Rondonópolis (MT) - onde há 12 mil cabeças de gado e lavouras de arroz que produziram 15 mil sacas em 1987 -, o velho Shunji sente-se à vontade para acompanhar de perto, dia a dia, o funcionamento da escola que, em 20 de fevereiro último, formou sua quarta turma de técnicos agrícolas. Para tocar a escola inspirada na Nippon Rikkokai que freqüentou no Japão antes de partir para o Brasil, Nishimura criou uma fundação (que leva seu próprio nome) mantida por contribuições da Jacto e de suas subsidiárias. "Custa 1 milhão de cruzados por mês", informa Nishimura, lembrando que há no Estado de São Paulo 32 escolas semelhantes mantidas pelo governo estadual. Só que na escola de Nishimura, além de pagarem um salário mínimo mensal, os 120 alunos estudam e trabalham duro de sol a sol, com uma folga mensal e apenas três semanas de férias por ano. Convencido de que "na agricultura não há férias". Nishimura estabeleceu em sua escola um programa pedagógico que vai desde tirar leite matutino até aulas noturnas de arte e judô. Terminado o curso de três anos, saem de Pompéia, a cada ano, 40 técnicos que sabem fazer doces, conservas, adubos, hortas, contabilidade, lavoura, análise de solo, criação animal e manutenção de máquinas. Não por acaso, a maioria é descendente de imigrantes japoneses e todos têm a possibilidade de escolher entre várias ofertas de emprego pregadas no mural da escola.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil