Reportagens › Casamentos nipo-brasileiros adaptam e resgatam tradições dos dois países
japao100.com.br, 11/09/2008
TEXTO MARIANE MORISAWA
FOTOS CARLOS VILLALBA
Durante décadas, o matrimônio entre nikkeis no Brasil era feito por miai (casamento arranjado). Hoje já não é mais assim. Essa tradição se rompeu, mas outras estão sendo resgatadas, como a cerimônia budista. Um exemplo é a história do casal Vanessa e Victor. Conheça aqui.
Vanessa Higa, 31, é uma moça moderna, que vai atrás do que quer. Interessada em Victor Teramoto, 29, que conheceu no estágio da faculdade – ela fez relações públicas, ele, publicidade –, descobriu o endereço do rapaz no estacionamento onde ambos paravam o carro. Mandou flores e cartão sem assinatura. Mais tarde, finalmente tomou coragem e ligou, declarando seu interesse. “Mas ele é muito sério, não demonstrou nada”, conta. Algum tempo depois, ela agendou uma temporada no exterior. Despediu-se de todos no trabalho, inclusive de Victor. Poucos dias antes de ela embarcar, ele telefonou para marcar um encontro. Vanessa achou que era sobre trabalho. Não era. Eles passaram três horas conversando. Começaram a namorar, mesmo à distância. Foram sete anos de namoro, até se casarem, em 2 de dezembro de 2007. A família de Vanessa é de origem okinawana, enquanto a de Victor veio de Hiroshima e Kagoshima.
A história de Vanessa e Victor é apenas uma mostra de como as coisas mudaram na comunidade japonesa. Durante bastante tempo, os casamentos eram feitos pela prática do miai – um intermediário aproximava as famílias para que se fizesse um acordo. “O amor como a gente entende, Romeu e Julieta, era exceção total”, diz a historiadora Célia Sakurai. “A concepção de casamento para o japonês é a de um contrato entre famílias.”. Veja FOTOS de casamentos publicadas pelos participantes deste site.
No Japão, muitas vezes o noivo só conhecia a noiva na hora do casamento. Aqui, em geral o noivo visitava a casa da noiva, levando um presente para a família dela. No Brasil, aconteceu um fenômeno raro no Japão: o casamento entre gente de províncias diferentes. “O intermediário até tentava casar pessoas de províncias semelhantes”, diz Célia. Não era a regra. Esse tipo de mistura ajudou a congregar a comunidade, de certa forma. A exceção eram os imigrantes vindos de Okinawa, que se casavam exclusivamente com okinawanos durante décadas. “Sempre houve discriminação dos próprios japoneses de outras ilhas em relação aos okinawanos”, conta Célia.
No início, o casamento entre japoneses e não-descendentes era mais raro, apesar de acontecer esporadicamente. “Os japoneses que vieram para cá tinham pouco ou nenhum contato com o que era estrangeiro, porque vinham basicamente de zonas rurais”, conta Célia. “Para mim, eles não se misturavam por questão de sobrevivência. Eles nem conseguiam se comunicar com os brasileiros.” Hoje em dia, os casamentos entre descendentes e não-descendentes superam os 50%.Depois da guerra, aconteceu no Brasil a prática das noivas de fotografia. “Os imigrantes mais antigos resistiam a casar suas filhas com os moços que vinham depois da guerra, que eram muito mais modernos”, diz a historiadora. Esses rapazes enviavam fotografias ao Japão, na esperança de encontrar uma noiva que topasse viajar para o Brasil.
Outra diferença em relação ao Japão é o número de filhos, muito maior aqui, para contar com mais braços para o trabalho.
O resgate das origens: casamento tradicional em um templo budista
A mãe de Vanessa é católica praticante, assim como os pais de Victor. Só que os dois pensavam: nós não somos. Por isso, decidiram procurar outras possibilidades para realizar seu casamento. Uma delas foi o Templo Matriz Honpa Hongwanji do Brasil, budista, localizado em São Paulo, onde já tinham estado para missas de família. Tiveram uma conversa com um monge jovem, vestido de bermuda e regata, que os impressionou. No dia seguinte, Victor decidiu assistir a uma celebração em português – lá, elas acontecem somente aos domingos, às 7h da manhã. Na semana seguinte, curiosa, ela decidiu ir também. “Eu me identifiquei de imediato com os valores. Começamos a freqüentar assiduamente”, diz Vanessa. Foram batizados, aproveitando a vinda do papa dessa linha do budismo japonês ao Brasil. Na cerimônia, ele passa uma lâmina na cabeça de cada um a ser batizado. Foi como um retorno às origens, ainda mais para Victor, cujo avô teve participação ativa na vinda dessa linha do budismo para o Brasil.
O casamento foi marcado para dezembro, e então começaram os preparativos. Como não existe um roteiro muito rígido, eles consultaram o monge Shaku Isshin (Fábio Adriano Takahashi). A cerimônia foi realizada pelo bispo Hirofumi Watanabe. O único pedido era que o templo estivesse vazio às 18h. A cerimônia foi às 17h. Os pontos mais importantes são a troca do terço e a das alianças, a oferenda do incenso e a do saquê – oferecido pela avó de Victor, Natsue Ogura. “Ela ficou superfeliz, honrada, porque sabe o significado dessa pessoa no casamento”, diz Vanessa. Primeiro, a noiva toma do cálice menor, depois é a vez de o noivo tomar do cálice médio, e, em seguida, a noiva encerra essa parte do casamento tomando o último gole, do maior cálice de todos.
A decoração, com predominância de bambus, foi feita em cima da hora, porque o templo tinha várias atividades durante o dia. Normalmente, são dois padrinhos: uma mulher para a noiva e um homem para o noivo. Vanessa e Victor escolheram ter cinco casais de padrinhos cada um.
Nos trajes, decidiram recuperar a tradição, casando-se de quimono. Há poucos lugares onde se pode alugar quimonos de casamentos, que têm várias camadas e são feitos de tecidos nobres. Vanessa recorreu a Sumie Watanabe.“São muitas peças e tem aquele laço nas costas que me deixava parecendo uma tartaruga”, diz Vanessa, divertindo-se. Os pais acabaram topando vestir quimonos também, assim como a dama de honra e o pajem.
No caso dos primeiros japoneses a virem para o Brasil, a história é diferente. “Desde a década de 20, a roupa da noiva era a ocidental”, diz Célia Sakurai. Afinal, era uma dificuldade trazer do Japão um traje típico de casamento. “Aconteceu de trazerem, mas, numa dificuldade financeira, venderem o quimono. Ou cortavam para transformá-lo em vestidos.”
Além disso, era raro conseguir celebrar um casamento budista, já que poucos monges vieram. “Às vezes, adaptava-se, outra pessoa rezava.” Mas, em geral, os japoneses acabaram batizando-se na igreja católica. Em toda cidade pequena, há igreja e padre. “Fora que ter padrinho, principalmente no interior, é simbolicamente importante. Ter padrinhos brasileiros é uma deferência, uma forma de respeito. E sempre é uma figura importante naquela comunidade.”
Festa nipo-brasileira: comida brasileira ao som de taikos e shamisens
Na procura por um lugar para a festa, Vanessa e Victor encontraram o kaikan da Associação Miyagi Kenjinkai do Brasil (associação da província de Miyagi), localizado no bairro da Liberdade, em São Paulo. O preço era bom, o salão estava em bom estado. A celebração contou com o show do blueseiro Vasco Faé, mas também teve show do noivo, que sempre gostou de cantar em karaokê, da noiva, que toca shamisen (instrumento de cordas japonês), e da irmã da noiva, participante de um grupo de taiko, o Ryukyu Koku Matsuri Daikô. “Foi como uma imersão cultural mesmo”, diz Vanessa, que gosta de preservar a cultura de Okinawa, de seus antepassados. “Fui recordando os casamentos dos meus primos mais velhos, com aquelas mesas compridas... Queria resgatar isso mesmo.”
No cardápio, nada de comida japonesa: arroz trufado, frango recheado, polenta com ragu. As sobremesas eram tapioca com creme de manga e tiramisu, mas havia trufas de chá verde e doces com laranja kinkan. A lembrancinha foi um boneco daruma, símbolo da persistência.
A festa sempre foi o mais importante de um casamento. Muitas vezes, eram realizadas no salão da associação da comunidade. “Quanto mais cheia a mesa, mais abundante e rico era o casamento. Tinha gente que se endividava”, diz Célia Sakurai. Em geral, armava-se um mutirão de mulheres para preparar os pratos. “E sempre tinha os discursos, que apresentavam para a sociedade o novo casal.” A comida variava muito, de acordo com a região das famílias dos noivos. “Normalmente, tinha aquele arroz, mochigome, misturado com feijão azuki, que fica meio avermelhado.” O ritual dos três goles de saquê era adaptado, pela falta da bebida: fazia-se com pinga mesmo. “Não havia idealização, porque a vida continuava no dia seguinte”, afirma Célia Sakurai.
Vindos de uma terra tão distante e com costumes tão diferentes da nova pátria que adotaram, os japoneses tiveram de se adaptar logo de cara. Apesar de manterem a cultura por algum tempo, o nascimento das novas gerações no Brasil – muitas vezes aliados às misturas com não-descendentes – transformaram ainda mais os hábitos dos japoneses. Com freqüência, eles se perderam totalmente. Ainda bem que gente da terceira geração, como Vanessa e Victor, agora quer resgatar essa cultura, aproximando-se de seus ancestrais. Sem, jamais, deixar de ser brasileira.
Os japoneses chegaram aqui há um século. Desde junho de 1908, muita coisa aconteceu. Ajude a resgatar essa memória.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil