Reportagens › Budismo, a religião do indivíduo
Leandro Narloch
A doutrina budista não tem Deus, pecado nem explicações sobre a origem do universo. O que vale é praticar o bem aqui e agora. Conheça a religião que confere ao indivíduo plena responsabilidade sobre sua trajetória espiritual.
Você já deve ter percebido: o Budismo está na moda. Com adeptos cultos – leitores vorazes, formadores de opinião e gente famosa –, essa religião volta e meia vira tema de reportagens ou de livros. Uma universidade dedicada aos ensinamentos budistas funcionará em Cotia, na Grande São Paulo, a partir de 2004, e algumas de suas técnicas, como a yoga e a meditação, se difundem entre pessoas que não estão necessariamente em busca de espiritualidade. Apesar de ter se tornado popular, a doutrina budista ainda guarda alguns aspectos desconhecidos. Nem todos sabem, por exemplo, que se trata de uma religião sem Deus, baseada nos ensinamentos de um príncipe indiano.
O Budismo surgiu na chamada Era Axial, entre os séculos 8 e 2 a.C. Na Índia, seu berço, funcionou como uma religião protestante ao Hinduísmo. Perante a rígida sociedade de castas dos brâmanes hindus, os monges budistas pregavam uma busca espiritual desvinculada de posições sociais. O Budismo misturou-se com seitas da Ásia e espalhou-se por todo o continente, para depois conquistar os países ocidentais.
Hoje, existem cerca de 400 milhões de budistas no mundo todo, divididos em centenas de grupos e correntes, como a Nova Tradição Kadampa, que nasceu no Ocidente. Aliás, no processo de ocidentalização, o Budismo ganhou contornos que o aproximam, na visão de alguns adeptos, de um filosofia de vida ou de um conjunto de técnicas para melhorar o bem-estar. Exemplo dessa mistura é a prática da funcionária pública Giovanna Tocaia Reis, de 36 anos. “É como se eu tomasse um calmante”, diz ela, que desde outubro de 2002 freqüenta, aos domingos, um templo zen-budista em São Paulo. “Antes tinha dificuldade para dormir. Depois que comecei a meditar, meu sono mudou notoriamente. E quando você tem uma noite bem dormida, tudo melhora em sua vida.”
Giovanna instalou, no canto do seu quarto, um pequeno templo de meditação, com uma imagem de Buda e um anjo da guarda – ela acredita em Deus, apesar de o Budismo não conceber um ser superior, onisciente, a quem se deva prestar contas. Giovanna passa meia hora por dia ali, aplicando as técnicas que aprende com os mestres do templo ou em leituras. “Não gosto do blablablá da maioria das religiões. No Budismo, tudo depende de mim. E o mais importante é que a prática da meditação está me fazendo recuperar a espiritualidade”, afirma ela.
De fato, segundo a doutrina budista, o caminho para alcançar o sagrado depende apenas do indivíduo. E esse talvez seja o grande atrativo da religião para os adeptos mais recentes. Sem a idéia de Deus – o Buda Sidarta Gautama é considerado uma pessoa iluminada, não uma divindade –, os fundamentos budistas confiam ao ser humano as etapas para a iluminação. “Todas as suas ações influenciarão seu futuro. É a lei da ação e reação”, diz o budista Fabiano Buck, de 28 anos, membro da Associação Brasil–Soka Gakkai Internacional de Curitiba, no Paraná. A responsabilidade pelos próprios atos, que não são sabidos por um ser superior, extingue a noção de pecado. “O caminho é traçado por você mesmo. Nenhuma autoridade diz o que é certo ou errado”, afirma o teólogo Frank Usarski, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e organizador do livro O Budismo no Brasil.
É por isso que o Budismo pode se adaptar a diferentes culturas e objetivos do praticante. Nos anos 60, quando se tornou pop entre a contracultura, caía muito bem ao novo modo de pensar: era uma religião que exigia poucos compromissos e não vinculava buscas individuais a lutas sociais. Para os hippies, além da libertação da culpa, o Budismo poderia trazer outras descobertas. “Depois da euforia com os alucinógenos, muitas pessoas começaram a procurar formas naturais, e não químicas, de expandir a mente”, diz o teólogo Frank.
O caminho para essa expansão da mente, na maioria das correntes budistas, passa pela meditação e recitação de mantras (sons que evocam forças espirituais). “Isso nos faz esquecer as preocupações cotidianas e voltar à nossa própria essência”, afirma Francisco Jo-shin, da Comunidade Zen Budista do Brasil. Segundo os budistas, o apego aos desejos mundanos é um dos grandes males da humanidade. A meditação seria o melhor exercício para o desapego. “Todos nós sofremos da doença do apego, do medo e da raiva”, diz Daniel Calmanowitz, coordenador do Centro de Dharma da Paz, em São Paulo, e pai de Michel Rimpoche, o primeiro e único lama brasileiro. Desapegar-se dos prazeres mundanos é o primeiro passo para a iluminação, ou seja, para atingir o Nirvana.
“Na crença budista, você não age para salvar o mundo como acreditam os fiéis cristãos”, afirma o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, especialista em religiões da Universidade de São Paulo. “O Budismo prega o retirar-se do mundo, a inação. É, portanto, a mais pura das mais puras alienações”, diz o professor. “É por isso que a religião desperta tanta curiosidade no Ocidente, e é aí que está seu lado interessante.” Tal concepção explica também por que não há na doutrina budista mitos sobre a origem do universo ou sobre como o homem foi criado. “Questões a respeito do nascimento do mundo são irrelevantes para o Budismo”, afirma Ricardo Mário Gonçalves, praticante do Budismo Terra Pura e membro do Instituto Budista de Estudos Missionários, em São Paulo. “Nós budistas, nos preocupamos muito mais com a origem do sofrimento e das angústias do ser humano.” Mesmo sem cosmogonia, Deus ou pecado, o Budismo leva ao sagrado. Pelo caminho que cada um escolher.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil