Reportagens › A arte de fazer os velhinhos felizes
Realidade, 1/04/1974VALDIR ZWETSCH
Um dia os filhos de Satoshi cresceram e foram absorvidos pela grande cidade. A antiga família patriarcal, cujos princípios aprendera no Japão, desgastara-se totalmente em mais de quarenta anos de Brasil. Depois a mulher de Satoshi morreu e o velho imigrante passou a depender dos filhos, que já não pensavam como ele e pareciam viver num mundo diferente. Satoshi percebeu que estava se tornando um peso para a família.
O problema de como cuidar dos velhos é angustiante e universal. Ele se agrava, porém, nas famílias de imigrantes. Nelas, não existe apenas o abismo criado pela diferença de idade. Na maioria dos casos surge a dificuldade de comunicação. Na luta pela sobrevivência numa terra estranha, os imigrantes não tiveram tempo de aprender a língua local e seus descendentes não se preocuparam em dominar o idioma paterno. Além de tudo persistem diferenças de cultura, de hábitos e tradições.
Enquanto o velho pode trabalhar e se manter, as crises são contornáveis. Mas o que fazer nos casos como o de Satoshi? O último recurso no qual os filhos e netos pensariam seria um asilo. A palavra em si já soa deprimente
A colônia japonesa, no entanto, parece ter descoberto uma fórmula que se aproxima bastante de uma solução ideal - e não apenas para velhos imigrantes: o Jardim de Repouso São Francisco (Ikoi no Sono), localizado numa área de 10 alqueires no município de Guarulhos, na Grande São Paulo, doada pelos frades franciscanos.
Embora seus dirigentes digam que a instituição não pretende servir de modelo a ninguém, os princípios e normas por eles adotados têm dado excelentes resultados e são perfeitamente adaptáveis a outros tipos de comunidades.
O Ikoi no Sono foi fundado em 1958 pelos dirigentes da Assistência Social Dom José Gaspar e sua idealização seguiu um raciocínio extremamente prático. O objetivo era criar um lugar onde os velhinhos, evidentemente, fossem felizes. Para isso, havia duas condições básicas, achavam os responsáveis pelo Jardim: mais do que ninguém, os velhos precisam sentir-se úteis e amados. Ficando em casa, eles podem, no máximo, varrer o jardim (se não morarem em um apartamento) ou cuidar dos netos pequenos. E, no entanto, eram todos lavradores, "gente acostumada a cultivar a terra e a poesia". Logo, o passo inicial seria criar um local onde essas qualidades pudessem ser manifestadas anulando, automaticamente, o sentimento de inutilidade e desafeto. A experiência posterior demonstrou que o raciocínio era correto.
No Jardim, o antigo trabalho é revalorizado - Satoshi, por exemplo, está no Jardim há dois anos. Ao completar 72 anos de idade, resolveu voluntariamente ir morar lá. Hoje, levanta-se bem cedo, toma um café reforçado e vai trabalhar. Na horta que ele mesmo construiu aplica a sabedoria acumulada em mais de meio século de vida rural. Como se tivesse adquirido novo vigor, move a enxada com energia e satisfação - sabe que as verduras e a mandioca por ele plantadas vão contribuir para a alimentação de seus 125 companheiros do Jardim. Acima de tudo, Satoshi sente-se livre. Se quiser pode, como seus outros colegas, iniciar uma criação de coelhos ou de porcos. Ou fazer jardins ao redor dos pavilhões. Ou simplesmente compor poemas. É o caso de Yoshi Ishikawa, uma sorridente velhinha de 80 anos. Yoshi se tornou famosa na colônia pelos seus trabalhos publicados em jornais japoneses. Ela pertence a um clube de haikai (poemas compostos de três versos de 7-5-7 sílabas) de São Paulo. Quase todos os fins de semana aparece alguém no Jardim para levá-la às reuniões. "Eles precisam de mim", diz Yoshi orgulhosa. As companheiras de Yoshi dedicam-se mais à cerâmica, aos bordados e à confecção de delicados tapetes de retalhos. Os que não conseguem trabalhar passam o dia jogando o "gô" (jogo típico japonês), lendo ou simplesmente passeando. A assistente social do Jardim, porém, está realizando entrevistas individuais com todos os internos: ela pretende fazer um levantamento das aspirações dos velhinhos e, a partir daí, estimular novas atividades.
Respeito aos velhos hábitos, uma forma de amor - Mas como demonstrar aos velhinhos que eles são amados? Aqui novamente predominou uma visão bastante objetiva.
Numa família, o conflito de gerações surge quando uma das partes pretende impor seu modo de pensar ou agir. "Mas não se pode mudar, na velhice, os hábitos de uma pessoa", diziam os futuros organizadores do Jardim. Se no Ikoi no Sono os velhinhos pudessem comer a comida a que estavam acostumados, falar a própria língua e ser perfeitamente entendidos, conviver com pessoas de costumes idênticos, cercar-se de uma paisagem familiar e dedicar-se a lazeres típicos, eles por certo sentir-se-iam amados. E por se tratar de uma comunidade homogênea, o plano pôde ser realizado. Surgiram um belíssimo jardim oriental e pequenas pontes construídas sobre as águas claras de um regato. Recentemente instalaram até um "ofurô" (banheira), permitindo aos velhinhos curtir o tradicional banho de imersão, um momento de relaxamento dos mais caros aos japoneses.
Os fins de semana são dias de festa: grupos de atores e músicos apresentam peças de samurais, números de poesia e cantos tradicionais. Muitos dos assistentes não se contêm, invadem o palco e dançam ou cantam juntos.
Atualmente o Jardim tem o aspecto de uma próspera granja. Às vezes a produção é bem grande e ultrapassa as exigências do consumo interno. Então o excesso é vendido e o lucro reverte para a instituição. O mesmo ocorre com os trabalhos de artesanato. Assim os velhinhos sentem - dizem os diretores - que não estão recebendo caridade.
"Somos como uma grande família", diz dona Margarida Watanabe, ágil e lúcida mulher de 73 anos e uma das fundadoras do Ikoi no Sono. Dona Margarida luta pelos imigrantes japoneses desde os duros tempos da Segunda Guerra Mundial. Sua intensa atividade no campo da assistência social a tornou uma das mulheres mais admiradas e respeitadas da colônia.
Ao verem, no Ikoi no Sono, suas habilidades revalorizadas, seus hábitos e sua moral tradicional respeitados, os velhos sentem estar num mundo que lhes pertence. Uma satisfação que poderia ser usufruída por outras comunidades, não necessariamente étnicas. Por que não um Jardim de repouso de profissionais liberais? Ou de trabalhadores braçais? Evidentemente é preciso contar, como conta o Ikoi no Sono, com a assessoria de um grupo abnegado de colaboradores, inclusive especialistas: engenheiros agrônomos, professores de arte, arquitetos, psicólogos, médicos. Lá eles se dividem em diversas comissões (economia e finanças, agropecuária, jurídica, cerâmica, saúde e bem-estar, etc.) que se responsabilizam por setores determinados e assim agem com maior eficiência.
O mais recente projeto dos diretores do Jardim trará uma alegria ainda maior para os anciãos: a instalação de um parque infantil. Com isso, acreditam, as famílias poderão levar seus filhos pequenos e ficarão mais motivadas a visitar o Ikoi no Sono - e o riso das crianças encherá de novas esperanças velhos corações.
Os japoneses chegaram aqui há um século. Desde junho de 1908, muita coisa aconteceu. Ajude a resgatar essa memória.
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Este projeto tem a parceria da Associação para a Comemoração do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil